quarta-feira, 1 de abril de 2009

Luzes Encantadas

Doze badaladas e um cheirinho fresco da madrugada nocturna. Lá fora passeavam pássaros e cantavam pessoas em tons de segredo para não incomodar os vizinhos. As luzes baixinhas e os candeeiros da rua dançando ferozmente indecisos entre estar ou não estar de acordo com o que a sociedade lhes exige. Por detrás de uma poeira inconstante, uma bola de pêlo arranhada e perdida. Um senhor felino de bigodes cortados, em cima de um caixote que entretanto cai e faz barulho despertando o latir dos cães e as reclamações de uma mão cheia de humanos cuja palavra não mais é que a reclamação ignorante, sob efeito do cálice do nervosismo e do inconsciente da falta de saber...
Levanto-me e arranjo-me. Saio porque estou farto de estar em casa. Não me apetecia dormir nem estar acordado. Não me apetece sequer ficar sentado no sofá ou no lado de lá do mundo com uma máquina que só serve para chatear. Não me apetece. Saio.
Desço as escadas e o barulho das botas deve incomodar os outros, mas eu ignoro. Desço as escadas. Passado 2 minutos lá estou eu na rua, sozinho na companhia de sombras e de brincadeiras de gatos e de passaritos.
Caminho estrada a baixo automaticamente e ao longe uma luz estranha parece querer uivar cores diferentes com as novidades da Noite. Com as novidades de encantar. Guiado pelo seu clarão, danço pelas ruas enquanto os sons do vento me ameaçam os ouvidos. Vou andando, andando, andando e vou dar ao rio de Lisboa e às instalações populares, longe, porém, do sítio estranho onde o popular é ainda mais popular. Estou sozinho e sem a barulheira comum. Estou longe do vento até. A luz continua lá ao fundo. Parece que para onde quer que vá ela se apresenta despida de medo e a querer algo que, no entanto, não quer dizer.
Apetecia-me lançar o meu corpo a uma lancha e ir em busca do horizonte que se perdia nessa luz. Voltei costas porém e a luz manteve-se à minha frente. Subi a rua e pensei que seria bom encurralá-la. Levei-a até um beco mas não tive êxito. Por mais que tocasse nos limites, ela ia para lá do que eu pretendia. Não se deixava tocar. Pensei então que seria bom ir para lá de mim também e deixei-me guiar pelo inconsciente, vadiando sem pensar na luz. Ao início bem que foi difícil pois os meus sentidos e a minha vontade não se desprendiam de mim, mas consegui. Pensei no mundo, em ti, no mundo, em ti, nos outros, no mundo, nos outros, no mundo, algures, pensei. Ti. Mundo. Outros. Nada. Tudo. Pensei. Pensei. Pensei. Por onde andei, não sei. Por onde fui, perdi-me. E a luz desapareceu. Andei, andei, andei e comecei a Noite com as estrelas a cair-me no corpo. Por cada uma, um sorriso. No final, a Lua despida e sorridente. Ao longe uma árvore pintada de negro pela claridade da Noite que só neste mundo existe. Aqui ao pé um papel no chão com um desenho indecifrável pelo tempo e pelo desprezo dos sapatos que o quiseram pisar...
Voltei para casa porque me cansei de ouvir os vizinhos reclamar. De ver os gatos cair dos caixotes e de sentir que o mundo pára a cada segundo que passa. Cansei-me e fui para casa. No caminho, sentia que não estava sozinho e que o mundo tinha pintado no céu os versos da luz que me tinha acompanhado a Noite toda. Cheguei a casa a sorrir. Quando me apresentei à casa de banho para me despedir do dia e fechar os olhos eram seis da manhã e quando olhei para o meu reflexo uma última vez nessa madrugada, a luz estava lá ao fundo, bem dentro do meu corpo. Deitei-me e ela adormeceu perto do meu coração.

02.01.07

2 comentários:

david disse...

lembro-me de ter lido isso e de ter sorriso tal e qual o que acabou de acontecer.

Corvi Umbra disse...

-)