sábado, 20 de setembro de 2008

Eu e parte de mim

De corpo junto ao meu, de encaixe perfeito e toque sensual. De cor incerta e discursos de revolta, ódio, amor e carinho. De palavras que não saem, que se embalam entre sal e sauna de quem sente e se desfigura. De olhar longe do tempo, nesse corpo que dança ao som do que entoa, nesse egocentrismo que fica na dualidade imperfeita mas tão leal. Talvez. De tudo o que ficou parece a razão apelar partir. A escala sabe a história, o eco, a agudos de declínio. No bordão do que é grave, a palheta soa a tempestade quando é sombra do mais belo luar. Limpo e sarcástico na Noite. Nessa ameaça única de que nada é bom e o mau não existe. Cortaram-se meus braços. Chateou-se comigo. Um bigode novo, um caracol por enrolar. Sabe a pouco. O sangue nem escorre e o leite da música é somente mais um eco no meio dos acordes do que não fica. Os dedos saltitam trasto ante trasto com alvíssaras musicais. Fazem-no sem ordem, sem o saber. O inconsciente é nosso mesmo que não perfeito, mesmo que independente na forma como cada um se manifesta. Fugiu há muito a vontade de saber desenhar. O quadro é ser natural. A vontade e o desejo são luxo, gula, boémia. Não importa. Existe. Como tudo o resto. (Talvez). Desapareceu.

24-03-08

Remexi e encontrei...

Uma Noite de Lua rasgada ao meio. Uma Noite de estrelas recolhidas a um canto, lançando as mensagens nos desenhos que tudo dizem. Uma Noite sem rumo, predefinida pelo incomum. Uma Noite...

A escuridão era cortada pelos antigos candeeiros da cidade. Num cubículo, mulheres mal feitas, de juízos desprotegidos, entregues ao mundo cristalino da ilusão. Noutro, homens pecadores de sangue frio. No desrespeito no olhar. Melodias ferozes no silêncio do lá e acolá. Ruídos desconhecidos.

Um canto perdido. Perdido algures. Destroçado, mal apanhado. Faz talvez lembrar um canto de sodomia infantil. Um verso sem ponto, uma linha em nada.

Aí, dois seres. Um perdido na arte o outro no banal, no comum. Um perdido na revolta, outro na inocência do desconhecimento. Um, chorando, outro, ingénuo, sorrindo nas palavras. Um Amando, outro morrendo. Um morrendo, outro amando.

Gritos sinceros de cada um deles com aspiração à união e à existência. Com aspiração à ode pessoal e à ode colectiva. As brincadeiras das palavras, dos jogos de espaço e do tempo que não existe... Um passo em vão ou uma facada... O desatino do fazer e do não fazer.

Chegada à praia. O mar. O vento a soprar sobre as ondas e a gritar que os fanatismos da humanidade na modéstia que não existe e no sentir que é pecado são abolidos pela desonra de ser infiel à verdade, à realidade, ao todo, ao pensamento.

Caminhadas algures onde havia pegadas. Seguindo passos do antigamente. Unindo o tempo e sendo perfeito. Ao longe dos anos-luz pinados sobre Regulus ou Skat e laborando a piada da veia do inconsciente, sempre viva, sempre real...

Um grito, uma faca. Um berro de pavor e um escárnio de prazer carnal sempre entre a parede e o tempo. O espaço e as horas. O Eu e o Vós. A desgraça e o furor. O prazer natural transformado em ódio e em euforia. A vontade de ser feroz e superior aniquilada pelo ódio e todo o desalento.

Dizem que as pessoas são feitas de ar e que a luz provem da matéria que se compõe em spicatos de genes e substâncias epopeicas. Dizem que a brisa carbónica e hidrogénica se completa com astros que nos caem nos corpos e nos formam as células.

Eu pinto a eternidade do nada. Esse pelo menos é eterno e é meu. Não, não sou egoísta. Todos temos os nossos. Mas este é particularmente um todo só meu. O beijo da lealdade cortou-me a vontade de seguir rumos concretos. Apetece-me esculpir sentires e deixar-me ir. Talvez um dia tudo mude e até o nada seja eu...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

‘Wretches! ye loved her for her wealth and hated her for her pride,
‘And when she fell in feeble health, ye blessed her—that she died!
‘How shall the ritual, then, be read?—the requiem how be sung
‘By you—by yours, the evil eye,—by yours, the slanderous tongue
‘That did to death the innocence that died, and died so young?’
From Lenora by Edgar Allan Poe

Escrito em tempos... Coisas outras que por vezes por mim passam...

Falaram-me desta casa há anos atrás. Falaram sem nada dizer no cuidado de pintar cada parede - cada poeira até - com toda aquela melodia do silêncio. Falaram-me (falaram-nos), descreveram-na e a verdade ficou no para lá da percepção. Erros do tempo, erros do nada, falácias e letais verdades consumidas pela incerteza provocada por toda e qualquer veia humana. Esse lapso do saber...

Parecia uma casa, segundo tais mensagens, recheada de cor boémia muito ao jeito do gótico romântico e venenoso do tempo do incomum e do desconhecido. Esse tempo, esse agora, ainda que no passado vivido. Todavia, a imagem é escura, fria, triste, tétrica, suave. Em parte, corresponde às linhas dessa realidade, mas será demais dar-lhe tais características. Se há realidade que a escuridão não suporte é a entidade da boémia, a entidade do luxo voluptuoso, consagrada num individualismo de fragas. Nesse padrão, muito mais. Tamanha complexidade não se pode designar assim. Blasfémia seria não a máscara mas tal mascarada...

Demorei como que uma eternidade a abrir a porta. Sabia que mal desse os primeiros passos, a máscara estaria lá. Sabia que podia ser pintado de negro também (afinal, dizem, cada quarto era despromovido de velas e candeeiros e certamente, hoje, a sala também o seria. Muito mais com todas as histórias de cada quadro que encontrei). Demorei o tempo necessário para me lembrar das cores de cada sala narrada, de cada quarto vazio e de cada ponto que imaginei quando falaram do mascarado. Quem seria a máscara e quem me iria receber dentro de toda aquela escuridão, dentro de toda aquela transparência. Pensamentos limavam-me os poros e envenenavam-me a tinta que me ia escorrendo pelas veias...

Abri a porta. Forcei, puxei, forcei novamente e abri a porta. Com o arrastar do embate e do som que provoquei, caíram poeiras que desenharam no chão uma espécie de arco e o eco que se prolongou no meio do vazio levantou-as e fê-las tornar-se uma Lua. Não. Não a vi definida, vi-a na escuridão. Uma espécie de lua nova ou uma espécie de eclipse de onde saem apenas alguns raios brancos segundos antes da sua totalidade. Definida na escuridão sem se ver, vendo. As passadas foram longas no tempo. Parava minutos que pareciam horas que pareciam segundos. Parava e olhava sem nada ver. Sabia que ao meu lado respirava o corvo e sabia que à minha frente estava a história do meu passado. Não que fosse meu, mas porque o meu coração derretia com as chamas das imagens que a história me proporcionava.

Tinha um isqueiro comigo mas o gás havia acabado e portanto restavam-me os sentidos. Por detrás de toda a escuridão, o zumbido do silêncio fazia-me ouvir a música daquele último baile. Fazia-me ouvir as vozes de sorrisos e de relógios que entoavam badaladas e assustavam o medo provocando o silêncio pelo desconhecido. E foram essas instâncias sonoras, salpicadas de pó e de cadáveres zarolhos e renascidos que me ensinaram a ver na escuridão, desenhando passos e recebendo o cheiro e o ponto crucial de cada horror. Optei pelos quadros e olhei-os. Cada um recheado de memórias e chorando as lágrimas do que não esquecem. Cada um contando tristezas e alegrias e comovendo quem não percebe, irritando quem assim sente...

E eu sabia que não estava só.

Voltei-me e desenhei na escuridão todo o caminho respirando cada cadáver. Era curioso o facto de não sentir o seu cheiro. Sentir apenas presenças e paz. Fazia-me confusão - mesmo que estivesse ciente de que a paz era superior à morte. Mas a morte... A morte estava comigo e talvez por isso não fosse tão estranha toda aquela realidade. Talvez me tenha tornado transparente no momento em que dei o primeiro passo. Ou talvez me tenha sentido a sombra da transparência até ao topo deste castiçal onde me encontro, acompanhado pelas chamas da lareira e pelo sorriso da eternidade.

Cada cadáver tinha a exacta expressão do medo demente em que se bloqueia mas não se molda o rosto, ficando na serenidade do tempo, exactamente como um raio de luz congelado, num crepúsculo de dor mentida... Não era só eu a olhá-los mas era o primeiro a fazê-lo pela primeira vez desde há muitos anos. Avancei para umas quaisquer escadas e subi para aquilo que diziam ser os quartos e nesse momento não tinha mãos. Sentia-las, porém, mas não tinha mãos. Entrei no primeiro quarto. Ali predominava o azul. Cheirava a céu mas desentupido com algumas chamas de realeza nobre e abrupta. Creio que comensuravelmente designada. Cheirava a ópio. Ali, sim, estando em casa, como podia eu esquecer, mesmo sombra, mesmo transparente, todo aquele odor que me ajudara a ser quem não era ou, quiçá, quem era no mais profundo de mim...

Nesse quarto perdi um olho. Sabia que já não o tinha, mas via igualmente como se o tivesse e senti-me gozado. Saudavelmente gozado. Um bobo da corte sente-se pequenino mas não o sabe, uma corte de um bobo é que já desenha bem alto demências que não afectam... Mas fui gozado e temido e, aqui confesso, soube muito bem.

Caminhando para aquela segunda sala, fluía o púrpura. Oh que paz! Sentei-me nesse chão e senti que não tinha costas. E sorri. Olhei as janelas (enormes janelas) daquele quarto anterior. Dali a perspectiva era muitíssimo mais bela e a escuridão estava claramente mais luminosa. Acho que é bom ser-se zarolho e perder-se as mãos e as costas, pensei...

Subi para o andar das pernas e encaminhei-me para o terceiro quarto, avaliando tapeçarias e ornamentos de vidraças e saboreando o suor da mobília. Este era verde. Assustadoramente verde e cuspia-me risotas e deteriorava os meus ouvidos. Foi o verde que me matou os ouvidos (ironicamente natural, julgue-se). E o laranja que se seguiu fez-me lembrar o sol que me derreteu os braços e me tirou o tempo. Lá fora ainda, me tirou o tempo. Sempre coberto de ironias e alto e forte e... Essa gula humana de o ter, vislumbrada nos outros, sempre me tirou a fome e isso humilhou-me o tempo. Passei para o branco e em seguida para o roxo e todas as ombreiras e todos os caixilhos e toda a serenidade e todo o medo deturpado e amedrontado tiraram-me a face e os cabelos e derreteram-me os pés. Acho que começava a sentir uma espécie de formigueiro no coração e fez-me lembrar o ópio e a cigarrilha e a voz do tempo que me tiraram e a voz do álcool que me mentiram. Mas senti-me leve e gigante como o relógio de ébano que estava ali, parado, sem contar o tempo que contou no dia daquela alvorada, daquela ironia.

Cheguei ao último e como me haviam dito 'estava todo coberto por tapeçarias de veludo negro, que pendiam do tecto e pelas paredes, caindo em pesadas dobras sobre um tapete do mesmo material e tonalidade' e, sim, no meio da escuridão, já eu uma sombra total, salientava-se todo o foco negro e todo o pontinho distanciado porque até o vácuo se distingue no próprio vácuo. Salpicado, talvez, nesse último canto ouvia o sorriso daquele que reinava e sentia-me, já morto, vivo com a raiva de quem não sente e de quem não existe. O infinito que tudo toca. Ao lado, aquela cor de sangue fazia-me sorrir e pensar que o equilíbrio era perfeito e o desafio era perdoar e a matéria era desaparecer. Lembrei-me que estive lá mas não me lembrei como. E por momentos, enquanto me despia do ódio, lembrei-me... Nessa Noite fui toda essa Morte Escarlate e hoje, perdoado por mim mesmo e de vingança concluída, matei-me a mim...

[Poder-se-á dizer que tropecei no tempo e vivi o pecado nestes minutos curtos de escrita. Apoderei-me do trono que se perdeu nas ruas da humilhação mas fi-lo por amor e fidelidade porque sei que um dia esse passado será o futuro de um não-coração]